segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Presos na rede

Estudos e clínicas buscam entender e tratar a dependência de internet:entre 50 e 100 milhões de pessoas no mundo fazem uso patológico da tecnologia
Você passa o dia inteiro online no computador?Fica preocupado quando não consegue checar seus e-mails? Não se preocupe, você é normal. Por outro lado, lentamente cresce o número de pessoas que desenvolvem um uso patológico da internet e substituem a vida "real" pela "virtual". A dependência provoca desde o mau rendimento nos estudos e no trabalho, passando pelo afastamento de familiares e amigos e até contração de dívidas. Seria fácil responsabilizar a tecnologia e a onipresença da rede nos escritórios, universidades e residências pelo problema. Mas a questão não é tão simples. "É comum culparem a internet. Mas queremos mostrar que ela não está causando esses problemas, e sim pode facilitar a expressão de algumas dificuldades", afirma a psicóloga Rosa Maria Farah, coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Psicologia em Informática da PUC de São Paulo, o primeiro grupo estabelecido em uma universidade no Brasil para estudar e atender pacientes do distúrbio. "A internet é só um meio pelo qual os problemas encontram um canal de expressão", completa Rosa, cujo grupo já respondeu a mais de 5 mil e-mails de interessados por orientações. Segundo artigo da pesquisadora Diane Wieland, publicado na revista "Perspectives in Psychiatric Care", entre 5% e 10% dos internautas no mundo, pelo menos 50 milhões de pessoas, desenvolvem dependência da rede.
Sites de relacionamento como o Orkut levam dependentes a passar horas à frente da máquina
"Desde que começamos nossas pesquisas sobre a internet, o uso da rede tornou-se tão rotineiro quanto escovar os dentes", diz A'isha Ajayi, professora da faculdade de administração da Universidade de Kent, nos Estados Unidos, e especialista em multimídia. Para A'isha, os comportamentos online se aproximam muito de atividades, vícios e outros distúrbios humanos praticados offline. "Isso inclui apostas, jogos, namoro, pornografia infantil, compartilhamento de arquivos etc. Enquanto algumas delas são inofensivas, outras são de fato perigosas", afirma.
É uma via de mão dupla, como explica Kimberly Young, diretora do Centro para Dependência Online (EUA). "Por causa do anonimato da comunicação pela rede, uma pessoa que nunca teve uma dependência por material pornográfico ou sexual, por exemplo, pode ser exposta a esses estímulos online e desenvolver um vício", diz a psicóloga. "Em outros casos, alguém que já possui uma história de dependência sexual pode usar a internet para acessar pornografia e realizar algo que já era um problema mesmo sem a rede", afirma.
"O uso da internet não é um problema. Pelo contrário, ela facilita a vida", atesta o psiquiatra Aderbal Vieira Júnior, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), da Unifesp. Ou seja, a dificuldade aparece para as pessoas que já possuem uma inclinação a desenvolver dependência. A universidade abriu espaço para atendimento desse distúrbio no núcleo de dependências não-químicas do Proad há cerca de um ano. O tratamento é realizado por meio de terapia psicodinâmica e cognitiva-comportamental. Segundo Vieira, algumas linhas terapêuticas buscam afastar o paciente do objeto. "Nós não trabalhamos assim. Acho interessante estimulá-lo a descobrir quem ele é e o que a dependência significa. Assim ele estará mais situado para provocar uma mudança", explica. "Na medida em que a pessoa se expande existencialmente, o comportamento vai desaparecendo."
Segundo alguns especialistas, também é provável que aqueles que desenvolvem um uso patológico da rede tenham uma tendência a se envolver com outros vícios. "Existe uma relação freqüente entre dependência de internet e sexo", diz Aderbal Júnior.
O problema é tão recente que ainda existe uma discussão sobre qual o termo adequado para a dependência psicológica ligada ao uso da internet. "Vício" é uma das opções, mas não é unânime por ser uma palavra com conotação negativa e pressupor uso de substâncias químicas. "Preferimos dizer 'uso patológico' ou 'abusivo'", conta Rosa Farah. A palavra "compulsão", apesar de ser bastante utilizada inclusive para outras dependências, como a sexual, também não é a mais indicada. "Qualquer coisa que dê prazer e alívio pode causar dependência. Já a compulsão é a repetição de um comportamento desagradável que a pessoa não consegue evitar", diferencia Júnior.
Para esses profissionais que lidam com o problema, o diagnóstico é relativamente simples. "O melhor indicador de uso patológico da internet é verificar se existe um rompimento nas funções das pessoas. Se ela passa tanto tempo online a ponto de se prejudicar psicologicamente ou fisicamente, então há um problema", analisa o psicólogo John Suler, do Departamento de Psicologia e do Centro de Ciência e Tecnologia da Universidade de Rider (EUA). "Algumas pessoas passam muito tempo online, trabalhando ou como hobby, e isso não caracteriza necessariamente um vício", diz.
Suler toca em ponto importante na questão:a duração do uso da internet. "Assim como diagnosticar alcoolismo não é contabilizar a quantidade de bebida que uma pessoa consome, com a internet o mais importante não é o tempo gasto, mas o nível de debilitação que a atividade causa na vida do usuário", compara a psicóloga Kimberly Young.
Não se pode negar, porém, que exista uma relação. "Quanto mais grave a dependência, mais tempo a pessoa passa na internet, e, quanto mais longo o tempo de uso, maior a chance de ocorrer dependência", diz Aderbal Júnior. "Mas a duração não é essencial, o indivíduo pode navegar durante pouco tempo, mas apresentar um padrão prejudicial", afirma.
Segundo o psiquiatra, um indício importante de que há um problema é quando o sujeito sente que perdeu liberdade. "Se ele se conecta à internet para realizar uma determinada atividade e acaba fazendo outra coisa", exemplifica. Isso acontece quando alguém entra na rede para realizar alguma atividade profissional, mas não resiste a entrar em salas de bate-papo mesmo sabendo que isso pode prejudicá-lo no trabalho, por exemplo.
Muitas vezes, o uso fica entre o que seria considerado "normal" e prejudicial. É o caso de Rafael Renan, 18 anos, controlador de hospedagem de websites. Renan permanece conectado por cerca de 12 horas diárias.
Muito desse tempo é gasto com trabalho, mas ele admite ter dificuldades em reduzir o período de navegação. "Já tentei diminuir, tanto por reclamações da minha namorada quanto por medo de que ocorra alguma lesão nos olhos", diz. "Mas é incontrolável, sempre fico vasculhando a internet, em busca de novas idéias, sites diferentes etc.", conta. O designer gráfico Douglas W., 31 anos, também passa por algumas dificuldades com a rede. "Se eu tenho que sair da net fico um pouco irritado, mas passa rápido. Depois tenho que sair de casa pra me distrair, porque fico ansioso para usar de novo", revela. Mais grave foi o caso da alemã Gabriele Farke. Presa na dependência da rede, contraiu dívidas com gastos telefônicos, que levaram anos para serem quitadas, perdeu o emprego e o contato com a filha. Recuperada, Gabriele escreveu livros sobre o assunto e fundou uma ONG para ajudar pessoas que passam pelo mesmo problema (veja quadro à esquerda).
"Poderíamos argumentar que é ruim para as pessoas interagirem umas com as outras via tecnologia ao invés de fazerem isso cara a cara", reflete o psicólogo John Suler. "Mas o valor da comunicação mediada por computador depende do tipo e propósito da relação interpessoal. A internet é um modo excelente de se comunicar com amigos, familiares e colegas de trabalho. Contudo, não devemos utilizá-la como único modo de contato", afirma. Em casos menos freqüentes, o uso prolongado da internet pode até ajudar a resolver uma dificuldade psicológica, em vez de significar uma patologia. "Um adolescente introvertido que não consegue fazer amigos e começa a usar chat e comunicadores instantâneos pode estar construindo uma ponte para transpor essa comunicação para a vida real", exemplifica Rosa Farah.
"A internet é uma poderosa ferramenta de comunicação e informação, mas já criou e continuará criando problemas. Apesar disso, suspeito que pouquíssimas pessoas gostariam de retornar aos dias em que a rede não existia", resume Suler. O psicólogo está correto:basta saber como aproveitar as vantagens e facilidades que a internet traz.

Fonte: revista Galileu